Aprendendo a desaprender
Para a mente aberta, em qualquer momento da vida,
para novos conhecimentos e conceitos é preciso manter a alma nua
Seu Félix trabalhava na fábrica havia 22 anos.
Funcionário exemplar, nunca tinha faltado, o resultado da ilha de produção que
ele gerenciava era sempre superior e, não menos importante, ele demonstrava que
era feliz em seu trabalho. Sentia orgulho da profissão e da empresa onde tinha
construído sua carreira.
Um dia seu Félix e os demais supervisores foram
convocados para uma reunião com o novo gerente de segurança, um engenheiro
chamado Silas. Jovem, sorridente e usando o uniforme da empresa de maneira
impecável, o engenheiro recebeu os colegas, que foram se acomodando nas
cadeiras do auditório de treinamento. Com todos sentados, Silas começou a
explicação: “Pessoal, nada de muito difícil. Só precisamos reforçar a
preocupação com a segurança, por isso temos normas novas de comportamento aqui
na fábrica”. E passou a demonstrar uma série de procedimentos, que incluíam o uso
de óculos e protetores auriculares, rotinas de verificação de manutenção das
máquinas e até caminhar pela empresa, que agora deveria ser por corredores
pintados no chão.
O que os trabalhadores entregariam no final do dia
seria exatamente o mesmo: um determinado número de pares de calçados de
plástico, só que a partir de novos procedimentos. Quando Silas perguntou se
havia dúvidas, se ele tinha sido claro, seu Félix foi o primeiro a falar:
“Eu já entendi o jeito novo de fazer.
Eu só não sei ainda como não fazer do jeito velho”.
Sem querer, seu Félix tocou em um dos pontos mais
sensíveis da relação ensino-aprendizagem. O grande problema não é aprender
coisas novas. É desaprender coisas velhas. Substituir conceitos, hábitos,
crenças, certezas. Isso é que é difícil. Tudo o que aprendemos, seja um
conhecimento, um conceito, uma nova competência ou mesmo um procedimento
simples, depende de nosso repertório anterior. De certa forma, só aprendemos
mesmo aquilo que já sabemos. Apenas criamos uma nova organização mental,
através de uma série de insights e significados.
Seu Félix, por exemplo, era experiente, tinha mais
de duas décadas na fábrica sem nenhum acidente que comprometesse sua saúde ou o
resultado de seu trabalho. Para que, agora, essas novidades do engenheiro
Silas? Para que mudar o que estava dando certo? Em um mundo atordoado com
tantas novidades, com uma imensa quantidade de pesquisas, novas tecnologias e
produtos, abordagens inéditas em todas as áreas do conhecimento e todas as
profissões, a capacidade de desaprender passou a ser tão importante quanto a de
aprender. E isso não significa esquecer, nem ignorar o conhecimento anterior.
Até porque é justamente o velho que pode alavancar o entendimento do novo.
Não estamos partindo do zero. O que necessitamos
ter é uma qualidade que as crianças possuem de sobra: curiosidade.
E precisamos nos livrar de outra que os pequenos
não têm: preconceito. Crianças são naturalmente curiosas pelo simples motivo de
que estão descobrindo um mundo até então desconhecido. Tudo é novidade.
Infelizmente este mundo não está
preparado para conviver com os curiosos, pois eles incomodam.
Pais, professores, chefes, todos acabam, não por
dolo, mas por absoluta incapacidade ou tempo para responder a tudo, inibindo a
curiosidade infantil, que termina por atrofiar e encolher-se em um canto do
cérebro, onde também mora a futilidade. Por isso, um curioso é, frequentemente,
confundido com um leviano infantilizado. Mas, cuidado, não estou falando aqui
da curiosidade de saber com quem está saindo aquela colega do escritório, por
que perdeu o emprego o marido da vizinha, ou com quem ficará a mocinha na
novela. A que interessa é a curiosidade intelectual. Ser curioso, nesse
sentido, significa manter aberto o canal da aprendizagem. No mundo atual,
superconectado e hiperinformado, esse canal será uberdemandado. E, sobre o
preconceito, entenda-se que ele não é apenas a dificuldade em aceitar o
diferente mas também a resistência a aprender o novo. Um preconceito é um
conceito prévio, anterior, que, por estar há mais tempo alojado em algum canto
do cérebro da pessoa, vale-se desse usucapião para impedir a entrada de um novo
inquilino.
Não dá para imaginar um inimigo mais
poderoso do aprendizado e da evolução do que o apego férreo a conceitos
anteriores, por melhores que ele tenham sido até esse momento.
Sobre tudo isso, o escritor Fernando Pessoa,
através de seu heterônimo Alberto Caeiro, disse: “Não é bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores. Para ver as árvores e as flores é preciso
também não ter filosofia nenhuma. Procuro despir-me do que aprendi, procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me
pintaram os sentidos. Procuro desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
desembrulhar-me e ser eu... O essencial é saber ver. Mas isso (triste de nós
que trazemos a alma vestida), isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem
de desaprender...”.
O importante, segundo o poeta,
é manter a alma nua. Não colocar nela nenhuma roupa, principalmente se
tiver grife, e de maneira nenhuma, um uniforme.
Uma alma nua é aquela desprovida de etiquetas e
carimbos, disposta apenas a vestir fantasias coloridas, que alegram e podem ser
substituídas de acordo com a festa. A alma nua de Fernando Pessoa fez com que
ele produzisse uma obra sem limites, na qual falou de amor, de paz, da história
de Portugal, de política, da vida e da morte. As crianças não têm vergonha de
sua nudez. Nem do corpo, nem da alma. Por que temos nós, adultos, a dificuldade
de admitir nossa ignorância e expor nossa necessidade de aprender o novo?
A roupa que veste a alma do homem que
acha que sabe tudo tem a etiqueta da arrogância. Mal se dá conta ele que ela já
saiu de moda.
O Félix, pelo menos, admitiu que ainda não sabia
como não fazer o que sempre fizera. Com isso, rasgou a etiqueta.
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