Como escrever a tese certa e vencer
Ter que fazer uma tese de
doutoramento na incerteza de como será recebida e na insegurança quanto ao
futuro da carreira é experiência traumática. Quando passei por ela, gostaria de
ter tido alguma ajuda. É esta ajuda que ofereço hoje, após 30 anos de carreira,
a um hipotético doutorando, ou doutoranda, sobretudo das áreas de humanidades e
ciências sociais. Ela não vai garantir êxito, mas pode ajudar a descobrir o
caminho das pedras.
Dois pontos importantes na feitura da
tese são as citações e o vocabulário. Você será identificado, classificado e
avaliado de acordo com os autores que citar e a terminologia que usar. Se citar
os autores e usar os termos corretos, estará a meio caminho do clube. Caso
contrário, ficará de fora à espera de uma eventual mudança de cânone, que pode
vir tarde demais. Começo com os autores. A regra no Brasil foi e continua
sendo: cite sempre e abundantemente para mostrar erudição. Mas, atenção, não
cite qualquer um. É preciso identificar os autores do momento. Eles serão
sempre estrangeiros.
Atualmente, a preferência é para
franceses, alemães e ingleses, nesta ordem. Cito alguns, lembrando que a lista
é fluida. Entre os franceses, estão no alto Chartier, Ricoeur, Lacan, Derrida,
Deleuze, Lefort.
Foucault e Bourdieu ainda podem ser citados
com proveito. Quem se lembrar de Althusser e Poulantzas, no entanto, estará
vinte anos atrasado, cheirará a naftalina. Se for para citar um marxista, só o
velho Gramsci, que resiste bravamente, ou o norte-americano F. Jameson. Entre
os alemães, Nietzsche voltou com força. Auerbach e Benjamin, na teoria
literária, e Norbert Elias, em sociologia e história, são citação obrigatória.
Sociólogos e cientistas políticos não devem esquecer Habermas.
Dentre os ingleses, Hobsbawm, P.
Burke e Giddens darão boa impressão. Autores norte-americanos estão em alta. Em
ciência política, são indispensáveis. Robert Dahl ainda é aposta segura, Rorty
e Rawls continuam no topo. Em antropologia, C. Geertz pega muito bem, o mesmo
para R. Darnton e Hayden White em história. Não perca tempo com
latino-americanos (ou africanos, asiáticos, etc.).
Você conseguirá apenas parecer um
tanto exótico. Da Península Ibérica, só Boaventura de Souza Santos, e para a
turma de direito. Brasileiros não ajudarão muito, mas também não causarão
estrago, se bem escolhidos. Um autor brasileiro, no entanto, nunca poderá
faltar: seu orientador ou orientadora. Ignorá-lo é pecado capital. Você poderá
ser aprovado na defesa da tese, mas não terá seu apoio para negociar a
publicação dela e muito menos a orelha assinada por ele, ou ela. Se o
orientador ou orientadora não publicou nada, não desanime. Mencione uma aula,
uma conferência, qualquer coisa.
O vocabulário é a outra peça chave.
Uma palavra correta e você será logo bem visto. Uma palavra errada e você será
esnobado. Como no caso dos autores, no entanto, é preciso descobrir os termos
do dia. No momento, não importa qual seja o tema de sua tese, procure encaixar
em seu texto uma ou mais das seguintes palavras: olhar (as pessoas não veem,
opinam, comentam, analisam: elas lançam um olhar); descentrar (descentre,
sobretudo o Estado e o sujeito); desconstruir (desconstrua tudo); resgate
(resgate também tudo o que for possível, história, memória, cultura, deus e o
diabo, mesmo que seja para desconstruir depois); polissêmico (nada de ‘mono’);
outro, diferença, alteridade (é a diferença erudita), multiculturalismo (isto é
básico: tudo é diferença, fragmente tudo, se não conseguir juntar depois,
melhor); discurso, fala, escrita, dicção (os autores teóricos produzem
discurso, historiadores fazem escrita, poetas têm dicção); imaginário (tudo é
imaginado, inclusive a imaginação); cotidiano (você fará sucesso se escolher
como objeto de estudo algum aspecto novo do cotidiano, por exemplo, a história
da depilação feminina); etnia e gênero (essenciais para ficar bem com
afro-brasileiros e mulheres); povos (sempre no plural, “os povos da floresta”,
“os povos da rua”, no singular caiu de moda, lembra o populismo dos anos 60, só
o Brizola usa); cidadania (personifique-a: a cidadania fez isso ou aquilo,
reivindicou, etc.).
Para maior efeito, tente combinar
duas ou mais dessas palavras. Resgate a diferença. Melhor ainda: resgate o
olhar do outro. Atinja a perfeição: desconstrua, com novo olhar, os discursos
negadores do multiculturalismo.
E assim por diante.
Como no caso dos autores, certas
palavras comprometem. Você parecerá démodé se falar em classe social, modo de
produção, infra-estrutura, camponês, burguesia, nacionalismo. Em história, se
mencionar descrição, fato, verdade, pode encomendar a alma.
Além dos autores e do vocabulário, é
preciso ainda aprender a escrever como um intelectual acadêmico (note que
acadêmico não se refere mais à Academia Brasileira de Letras, mas à
universidade). Sobretudo, não deixe que seu estilo se confunda com o de
jornalistas ou outros leigos. Você deve transmitir a impressão de profundidade,
isto é, não pode ser entendido por qualquer leitor.
Há três regras básicas que formulo
com a ajuda do editor S.T. Williamson. Primeira: nunca use uma palavra curta se
puder substituí-la por outra maior: não é ‘crítica’, mas ‘criticismo’. Segunda:
nunca use só uma palavra se puder usar duas ou mais: ‘é provável’ deve ser
substituído por ‘a evidência disponível sugere não ser improvável’. Terceira: nunca
diga de maneira simples o que pode ser dito de maneira complexa.
Você não passará de um mero
jornalista se disser: ‘os mendigos devem ter seus direitos respeitados’. Mas se
revelará um autêntico cientista social se escrever: ‘o discurso multicultural,
com ser desconstrutor da exclusão, postula o resgate da cidadania dos povos da
rua’.
Boa sorte.
José Murilo de Carvalho
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