Um mistério sob o sol

No norte da Amazônia, onde o Brasil faz fronteira com a França, através da Guiana Francesa, pesquisas arqueológicas iniciadas ainda no século XIX têm comprovado uma herança indígena singular. Os sítios arqueológicos no Amapá apresentam coleções cerâmicas ricamente decoradas, muitas vezes colocadas em monumentos construídos em pedra, os megálitos.


Investigações mais recentes nos sítios megalíticos demonstram que essas construções não são apenas cemitérios. Com a ajuda de novas tecnologias, associadas a escavações detalhadas, as pesquisas no sítio Rego Grande, em Calçoene, mostram que os megálitos foram cuidadosamente planejados. Os indígenas que construíram e utilizaram essas estruturas estudaram e registraram movimentos do Sol e observaram atentamente os tipos de solo.

As construções megalíticas têm tamanhos variados. Algumas são pequenas e contêm três ou quatro blocos de granito. Outras podem alcançar áreas grandes e conter mais de uma centena de blocos. Esses sítios estão localizados em ambiente de transição entre campos alagados, cerrado e floresta de terra firme, ocupando uma faixa de terra próxima ao litoral. As estruturas foram construídas sobre elevações do terreno, ficando protegidas das inundações sazonais.

As formas em que os conjuntos foram dispostos são variadas. Há conjuntos lineares, circulares e de formatos irregulares. As observações indicam que a forma das estruturas está diretamente ligada à das elevações do terreno, mostrando uma preocupação dos construtores com a relação entre a paisagem natural e suas construções.

Nas escavações recentes, realizadas a partir de 2006, novos conjuntos cerâmicos com belas decorações foram encontrados. Poços funerários, similares aos pesquisados por Emilio Goeldi no rio Cunani no final do século XIX, foram descobertos em diferentes estruturas. Alguns moradores de Calçoene, conhecedores dos sítios, descreveram achados de poços semelhantes. Todos contêm vários potes inteiros, mas em apenas alguns foram armazenados ossos humanos. Isso mostra que havia também oferendas aos mortos.

Muitas das vasilhas são finamente adornadas, mas em outros casos elas são bem simples. No sítio Rego Grande, um dos quatro poços funerários escavados pela nossa equipe tinha apenas potes sem decoração, em um total de 12 peças, organizadas cuidadosamente. Nesse mesmo sítio, outro poço funerário continha mais de duas dezenas de vasilhas cerâmicas, com formatos representando humanos e animais e ricamente decoradas.

Para além dos poços funerários, as escavações mostram que os megálitos serviram para a celebração de outras cerimônias. Observações realizadas no sítio Rego Grande demonstram que alguns blocos rochosos foram fixados no solo em locais muito precisos, indicando as posições do nascer e do pôr do sol durante o solstício que ocorre em dezembro.

O solstício é um evento cíclico e indica as posições máximas do movimento do Sol ao longo do ano, o que leva a maior intensidade de radiação solar em um dos hemisférios (solstício de verão), enquanto o outro está em solstício de inverno.

Apesar de ser um fenômeno que pode ser calculado hoje com muita precisão, ele é também facilmente observável, e muitos grupos indígenas – em diversas regiões do planeta – reconhecem e registram essa atividade. De fato, mesmo nas nossas casas, quando notamos que o Sol de dezembro ilumina áreas diferentes das atingidas pelo Sol de junho, por exemplo, estamos também observando o movimento solar. O solstício é o termo usado para marcar os pontos extremos dessa rota do Sol, ao sul e ao norte da linha do equador.

No sítio Rego Grande, alguns blocos estão alinhados para marcar o nascimento e o poente do Sol durante o solstício que ocorre em dezembro. O mais interessante sobre essa marcação é que os indígenas que construíram a estrutura transformaram esse conhecimento em algo permanente e durável. Considerando o caráter cíclico do solstício, imaginamos que essa data marcasse uma temporalidade para o grupo que utilizava o sítio, servindo como um marcador temporal concreto.

Através das pesquisas recentes, também foi possível a realização de datações do material arqueológico. Esse é um processo químico, realizado em laboratórios especializados, que permite calcular quando os sítios estavam sendo usados. Materiais como carvão, sementes e mesmo ossos podem ser usados para a datação radiocarbônica, baseada na presença de um elemento químico, o carbono-14. Análises de materiais provenientes de estruturas megalíticas e de antigas aldeias indígenas no norte do Amapá indicam que essas construções foram feitas entre mil e 300 anos atrás, o que indica uma grande persistência cultural.


Estudos realizados nos sítios arqueológicos onde existiram as antigas aldeias indígenas dos construtores dos megálitos também ajudam na construção dessa história pré-colonial. Parece claro que as estruturas megalíticas demandaram um esforço coletivo, não apenas para carregar os blocos de rocha, mas também para limpar o terreno e construir os poços e estruturas para inserir as rochas no solo e fi xá-las. No entanto, escavações em diferentes sítios de moradia demonstram que as aldeias eram pequenas, com poucas casas. Nessa região do Amapá não parece terem se desenvolvido grandes aldeias como as encontradas em outras porções da Amazônia.

É importante destacar que essas pesquisas indicam que a história pré-colonial nessa região teve uma dinâmica própria, que levou seus habitantes a criar e promover modifi cações permanentes na paisagem. As construções megalíticas, nas suas diversas formas e conteúdos, deram novos significados aos lugares. Seus construtores marcaram profundamente a região, deixando testemunhos concretos da vida, da morte e de seus conhecimentos. A riqueza dessa herança, que fascina pessoas há mil anos, é um patrimônio cultural vasto e ainda apenas superfi cialmente conhecido.

Mariana Petry Cabral e João Darcy de Moura Saldanha são arqueólogos do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá

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