O filhão do gabiru
Ancelmo Gois
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Os 34 centímetros de altura que separam os dois homens na foto acima
derrubam um mito. O mais baixo é o trabalhador rural pernambucano Amaro João da
Silva, 54 anos, 1,35 metro de altura. Sete anos atrás, ele virou manchete de
jornal com o apelido de "homem gabiru" (como são chamados alguns
tipos de rato no Nordeste). Parecia então que o gabiru pernambucano era a
própria ilustração do que a miséria nordestina estava produzindo: uma geração
de pessoas nanicas num processo que tenderia a agravar-se. Na época,
levantamentos errados sobre a miséria brasileira afirmavam que o país abrigava
30 milhões de famintos.
À direita na foto está um dos treze filhos de Amaro, Jones da Silva, 19
anos, 1,69 metro de altura, que como o pai sobrevive cortando cana-de-açúcar
para uma usina em Amaraji, a 88 quilômetros do Recife. Entre os dois há uma
disparidade que não é explicada por doença ou anomalia genética. "O motivo
da diferença entre a altura de Amaro e a de seu filho é que um teve comida na
época certa e o outro não", afirma o médico Meraldo Zisman, professor da
Universidade Estadual de Pernambuco e autor do livro Nordeste Pigmeu.
A baixa estatura de Amaro é chamada pelos especialistas de nanismo
nutricional. Amaro tem esse tamanho não por definição genética, como acontece
com os pigmeus africanos, que não passam de 1,50 metro de altura, mas por fome
e má alimentação. Ou seja, ao contrário dos africanos, ele não transmite seu
nanismo para a geração seguinte. A dieta básica com que Amaro foi alimentado
era paupérrima. "Eu comia banana, jaca e mingau de água com farinha e
só", diz. Carne raramente, e só de caça: tatu, rato-do-mato e teju — uma
espécie de lagarto. "Não gosto nem de lembrar da fome que passei."
Mesmo adulto, Amaro continuou tendo uma alimentação deficiente. Enfrentava dez
horas de corte de cana com apenas um café ralo e feijão com farinha. Ele só
conheceu arroz e carne de vaca depois dos 20 anos, e, mesmo assim, esses dois
itens quase nunca entravam no seu cardápio.
Fiquei rico — A reviravolta na vida dos Silva ocorreu em 1994, quando eles saíram do
casebre de taipa na zona rural para uma casa de alvenaria de três cômodos na
periferia de Amaraji. Além do salário mínimo pago pela usina, Amaro passou a
ter outras duas fontes de renda. Uma, a pensão pela morte da mulher, e outra
por meio de um programa oficial chamado Mão Amiga, que dá uma ajuda em dinheiro
para a família que mantém pelo menos um filho na escola. Com três salários
mínimos de renda mensal, Amaro fez uma revolução na mesa da casa. "Antes a
gente comia um preá, quando aparecia", compara Amaro. "Agora tem
carne todo dia. Tem arroz, feijão, café preto forte e leite." A melhora na
nutrição teve um efeito visível no crescimento da família Silva. Dos oito
filhos adultos de Amaro, três nunca chegaram a uma estatura normal. São
justamente os mais velhos, que nasceram e viveram os primeiros anos na roça. Os
outros cinco adultos têm mais de 1,60 metro de altura, o que está dentro dos
padrões nordestinos. Os filhos mais novos são mais altos do que eram seus
irmãos na roça. Eles caminham para atingir a estatura normal quando adultos.
O que está acontecendo com a família Silva não é um caso isolado. A
Pesquisa de Padrão de Vida divulgada no final de agosto pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, comprova que a nutrição na Região
Nordeste melhorou muito. Entre 1989 e o ano passado, o tamanho médio de um
garoto nordestino de 12 anos passou de 1,42 para 1,49 metro. Ou seja,
ganharam-se 7 centímetros. Nesse mesmo período, a altura média dos meninos da
Região Sudeste subiu 3 centímetros. Nos Estados Unidos, onde os padrões de
nutrição são muito superiores aos brasileiros e estáveis há muito tempo, são
necessários dez anos para que a média de altura suba 1,5 centímetro. "A
estatura é um dos indicadores mais exatos da qualidade de vida de uma
população", explica a pesquisadora do IBGE Elisa Kaioux. "No
Nordeste, é lógico que continuam existindo pessoas subnutridas e baixas, mas o
gabiru está cada vez mais virando exceção", diz. Esses não são os únicos
números do IBGE que surpreendem. Segundo a pesquisa, há hoje mais nordestinos
obesos do que desnutridos.
Sub-raça — Quando os jornalistas batizaram Amaro de gabiru, em 1991, os
meios de comunicação, VEJA entre eles, deram destaque ao que parecia ser o
prenúncio de uma catástrofe. Uma comissão parlamentar de inquérito criada para
apurar as causas da fome no país concluiu que naquele ano 6 milhões de crianças
no país viviam desnutridas. Mais de 10% delas teriam seqüelas da fome para o
resto da vida. Nesse cenário, Amaro era a confirmação de uma tese antiga: que a
fome acabaria criando uma sub-raça no Nordeste, mais baixa, mais fraca e menos
capaz do que a população do resto do país. A idéia era inspirada no livro Geografia
da Fome, escrito em 1946 pelo sociólogo pernambucano Josué de Castro, no
qual se registrou que os moradores da região açucareira comiam terra para
instintivamente corrigir as deficiências de minerais em sua dieta.
Um dos adeptos da tese da sub-raça, o médico Meraldo Zisman reviu sua
posição. Coletando dados sobre o peso das crianças nascidas na região
metropolitana do Recife entre 1962 e 1972, Zisman previu que haveria um número
cada vez maior de nanicos no Nordeste no final do século. "Mas eu não
contava com a estabilidade da economia. Foram quatro anos que tiveram um
impacto imenso na qualidade nutricional dos brasileiros", diz o médico.
"Com a comida mais acessível, gente que nunca teve um prato feito passou a
se alimentar regularmente." A fome ainda é uma vergonha no país. Mas, nos
últimos anos, o problema foi elevado a uma dimensão tão catastrófica que
parecia impossível de ser resolvido. O exemplo da família Silva e as últimas
pesquisas sobre o assunto mostram que a boa nutrição é uma coisa básica.
"Comeu, cresceu", define o empresário paulista Carlos Eduardo
Calfat-Salem, com a experiência de quem banca 9.000 refeições por dia para
crianças de zero a 2 anos nas creches que sua fundação sustenta em todo o
Brasil. "É simples assim."
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