A riqueza da Idade Média.

A obra A Idade Média e o dinheiro – Ensaio de antropologia 

histórica, de Le Goff, aborda como as pessoas julgavam a

 riqueza, o acúmulo e a circulação de metais preciosos no período

A Idade Média e o dinheiro – Ensaio de antropologia histórica está sendo lançado no Brasil pela Civilização Brasileira
Por Mauro Trintade

No primeiro dia de abril, o mundo perdeu um dos maiores especialistas em Idade Média e um dos idealizadores da Nova História, Jacques Le Goff, que teve seu livro A Idade Média e o dinheiro – Ensaio de antropologia históricalançado no Brasil recentemente. Seus estudos oferecem uma nova visão dessa longa era, muitas vezes reduzida a mero e arrastado interlúdio entre a Antiguidade e o Renascimento, um período de estagnação assolado por bárbaros, peste e fundamentalismo.

Essa percepção, no entanto, vem mudando e Le Goff ajuda a mostrar que a “Idade das Trevas” foi muito mais, em análises eruditas – e admiravelmente claras. O livro ajuda a corrigir a forma grosseira com a qual aquela era foi tratada desde que Leonardo Bruni a definiu em sua Historiae Florentini populi. Le Goff interpreta o passado não como um cadáver a ser exumado, mas como uma história viva sujeita às mesmas forças humanas que regem o presente. Em seu célebre História e memória (Unicamp, 528 páginas, 2012), ao analisar o trabalho de Marc Bloch e Benedetto Croce, aponta alguns pecados capitais no trabalho histórico, entre eles, “que esse trabalho fosse estritamente tributário da  cronologia: seria um erro grave pensar que a ordem adotada pelos historiadores nas suas investigações devesse necessariamente modelar-se pela dos acontecimentos.” Assim história não é mera narrativa linear dos fatos, mas interpretação e reorganização permanentes do passado em função do presente.

Já saíram pela mesma editora O Deus da Idade MédiaUma longa Idade Média,Uma história do corpo na Idade MédiaEm busca da Idade MédiaA bolsa e vida,Os intelectuais da Idade Média e São Francisco de Assis. E, em particular, o monumental São Luís, que recuperou a biografia como gênero histórico, retirando-a das páginas de escândalos, calúnias e narcisismo, em um momento em que a história econômica e social se sobrepunha à história política dos tronos e potestades. Também foram lançados aqui Homens e mulheres da Idade Média (Estação Liberdade), Para uma outra Idade Média eHeróis e maravilhas da Idade Média (Vozes).

O escritor francês também é identificado com o que se denominou de Nova História, o momento mais atual do que fi cou conhecido como a Escola dos Annales, movimento
 historiográfico que, criado pelo próprio Bloch e Lucien Febvre em 1929 com a revista  
Annales d’Histoire Économique et Socialepropôs uma nova atuação da história em colaboração
com as ciências sociais, em uma interdisciplinaridade que a afastou da história natural e
ampliou seus limites documentais, com elementos da cultura material e imaterial, como
a oralidade, as artes e as próprias mentalidades.

A Idade Média e o dinheiro – Ensaio de antropologia histórica revela não apenas a história
do dinheiro naquele período, mas como as pessoas julgavam a riqueza, o acúmulo e
a circulação de moedas e metais preciosos e como sua abundância – e escassez –
foram importantes em determinados momentos da vida social e econômica da Europa.
Por exemplo, qualquer leitor eventual pode saber a respeito das críticas à usura feitas
 pela Igreja na Idade Média e ter os ouvidos acostumados à atividade bancária mantida
por negociantes judeus, mas Goff nos alerta que a maioria dos comentários a respeito
destes são fruto do antissemitismo do século XIX e carecem de consistência histórica.
Muito mais ricas são as relações entre o surgimento do purgatório no pensamento
medieval e a aceitação cada vez maior do lucro sobre o dinheiro, isto é, o juro, em
uma transformação de valores operada ao longo de séculos. Ele ainda lembra, com
 pertinência, que a palavra latina ratio é traduzida frequentemente como razão, mas
também se refere a cálculo, em uma demonstração de como o conceito de mensuração
 tornou-se importante na Europa a partir do século XIII.

O historiador observa também que, durante boa parte da Idade Média, a riqueza de um homem
 não poderia ser medida em dinheiro. O próprio termo seria pouco compreendido naqueles séculos.
 Moeda, dinheiro e pecúnia estariam mais perto do sentido atual. Terras, homens e recursos
 eram as medidas de riqueza. Durante toda a Baixa Idade Média a moeda teve pouca circulação.
A cunhagem era limitada e a monetarização da vida foi um processo longo, complexo e com vários
 impulsos históricos, sociais e culturais que dificilmente podem ser analisados em uma única
esfera do conhecimento. Daí a força do método da Nova História de Le Goff , que recusa
 interpretações precipitadas a respeito de acontecimentos, práticas e instituições que tinham
um sentido muito diferente há sete ou oito séculos. Para Goff , aliás, há um anacronismo nefasto
 na historiografia, incapaz de compreender os homens e mulheres da Idade Média como diferentes
 de nós, assim como aquilo que hoje chamamos de “bancos”, “dinheiro” ou mesmo “economia”.

Na verdade, a economia tal como a entendemos só adquire especificidade a partir do século
VIII. Segundo o historiador austríaco Karl Polanyi, ela estaria até então embutida num labirinto
 de relações sociais, em um “sistema global de valores da religião e da sociedade cristãs”
do qual jamais se emancipou durante a Idade Média. Le Goff se bate contra a tese de que
ali já se inoculava o germe do capitalismo, em um simplismo que não dá conta da grandiosidade
 do período. “A criatividade da Idade Média está em outros pontos”, conclui o historiador.

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