História virtual

Jogos de computador simulam enredos históricos irreais. Como tirar proveito pedagógico dessa liberdade? Indígenas norte-americanos fazem uma aliança com os ingleses para conquistar a Ásia. Enquanto isso, portugueses e otomanos entram em guerra na América do Sul e japoneses cruzam o Pacífico para expandir seu império sobre o território americano. O Brasil? Foi colonizado pelos russos. Parece uma coleção de absurdos para você? Pois este mundo paralelo existe na cabeça de muitos jovens aficionados por videogames. Os jogos que simulam acontecimentos históricos são um sucesso de vendas e estão influenciando o modo como as novas gerações lidam com o conhecimento. São produtos bem diferentes daqueles criados na década de 1980, quando surgiu a primeira geração de videogames. Hoje eles não demandam apenas agilidade e reflexo para apertar botões – oferecem


enredos cada vez mais complexos, que se assemelham a roteiros de filmes ou narrativas históricas. Making History (“Fazendo História”), por exemplo, coloca o jogador no papel de um dos líderes das nações envolvidas na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Cabe a ele definir estratégias econômicas, políticas e bélicas para garantir sua sobrevivência no ambiente hostil da época. Com novos lançamentos todo ano, a indústria de jogos procura adicionar sempre mais atrativos aos seus produtos. No caso dos simuladores, um dos principais indícios de qualidade é a verossimilhança: os jogos utilizam fontes e documentos históricos para compor os desafios sugeridos. World in Conflict (“Mundo em conflito”) propõe a seguinte situação: a União Soviética não acabou, e promove, no final do século XX, uma invasão da Europa e dos Estados Unidos. O enredo utiliza elementos historiográficos baseados em pesquisas sobre a Guerra Fria, incluindo a reprodução de unidades militares, roupas de época, mapas políticos, frotas navais etc. Mas o prazer de jogar não é só este. O que mais estimula o jovem é o poder que ele tem de transformar os objetos, a História, as organizações específicas do jogo. Sua ação modifica o curso dos acontecimentos.

 Na Segunda Guerra, por exemplo, é possível articular uma aliança entre Estados Unidos e Alemanha, ou entre Japão e Inglaterra, o que alteraria a história conhecida, transformando os jovens em estrategistas de um enredo construído por suas mentes. Não é difícil entender esse fascínio. Enquanto no mundo “real” o jovem é apenas mais um na multidão, no jogo ele passa a ser um verdadeiro deus. Pode construir seu próprio caminho, interpretar os fatos e acontecimentos e visualizar o resultado desta interpretação na tela do computador. Nem percebe que está desenvolvendo conhecimentos complexos, pois eles vêm em forma de diversão. Naquele mundo virtual, os alunos percorrem raciocínios paralelos àquilo que o professor ensina em sala de aula – o que gera embates entre o saber escolar e o saber trazido pelos jogos eletrônicos. Mas que saber é este? De modo geral, os simuladores oferecem situações de simultaneidade, cronologia, implicações econômicas, sociais e culturais de decisões tomadas ao longo do tempo. Um dos jogos mais vendidos nos últimos anos é Age of Empires III (“Era dos Impérios III”). Nele, assume-se o papel do conquistador europeu, do índio ou de uma civilização oriental na luta pela conquista de territórios entre os séculos XVI e XIX. O jogador experimenta cenários imaginários – como “O que aconteceria se os índios vencessem os europeus no período da colonização?” – e testa tecnologias de diferentes civilizações, o que permite refletir e compreender as razões do domínio histórico de umas sobre as outras (os europeus levam vantagem sobre os indígenas graças ao conhecimento da pólvora e ao uso do cavalo, por exemplo). Pode controlar os resultados de suas ações, rever eventos, desconstruir as estratégias. Por meio de tentativa e erro, ele aprende as características de uma determinada civilização. Como professores, vivemos o desafio constante de nos manter atualizados sobre a constituição de novos saberes, formas de pensar e aprender entre os jovens. Mal recebemos informações sobre um novo videogame e outro já começa a ser anunciado, com características e formas de uso distintas do anterior, reiniciando nosso processo de aprendizagem “técnica” e tecnológica desses mecanismos cognitivos.

 As novas gerações estão imersas em formas de comunicação baseadas em comunidades abertas, participam de fóruns de discussão, páginas de relacionamentos, como o Orkut, e enciclopédias livres, como a Wikipedia. Enfim, o jovem é mais do que nunca um autor, e não apenas um consumidor de conhecimento. Da mesma forma, no jogo de elementos históricos ele pode escrever desfechos diferentes daqueles apresentados nos livros – algo que, por definição, a História escolar não tem como lhe propiciar. Diante de desdobramentos tão inusitados, é de se imaginar que qualquer professor fique preocupado com a possibilidade de o conhecimento histórico se desvirtuar. Esse risco, na verdade, não existe. Primeiro, porque o jovem tem plena consciência de que o jogo é apenas uma brincadeira imaginativa. Não o confunde com a realidade. Depois, porque, para promover alterações na História, ele precisa conhecer e dominar as informações prévias, estas sim fiéis aos acontecimentos. Em outras palavras: quanto maior o conhecimento histórico do jovem, maior será sua liberdade de criar alternativas em torno dele. É claro que a maioria dos jogos tem finalidade comercial, é produzida em larga escala e nem sempre se preocupa com a fidelidade historiográfica. Aqueles feitos nos Estados Unidos, por exemplo, costumam trazer uma perspectiva ocidental e norte-americana da História, além de um foco majoritariamente bélico. No World in Conflict não há espaço para diplomacia ou aspectos culturais das civilizações: tudo se resolve pela guerra. E no modo de jogo individual, a única opção é assumir o lado das tropas americanas, para defender-se da agressão do velho inimigo dos tempos de Guerra Fria. Isso não impede o professor de conhecer todos esses jogos, entender as diferenças entre eles e conversar sobre isso com os alunos. Justamente por serem objetos de consumo sintonizados com a cultura juvenil, vale mostrar que os próprios jogos também são documentos históricos e, como tal, carregam referências culturais, intenções mercadológicas e ideologias políticas. A escola precisa integrar-se aos discursos hipermidiáticos, ou seja, entender como o jovem se comunica, que tecnologias ele utiliza, como ele convive com outros jovens, se socializa, aprende. Só assim o professor pode desenvolver técnicas de ensino-aprendizagem mais próximas do universo juvenil.

 O jogo leva o aluno a tornar-se autor, produzir falas, conteúdos, mídias diversas e redes de socialização sobre o tema em questão. Estas características podem ser estimuladas pelo professor. Cabe a ele criar espaços que propiciem a produção do aluno, sabendo que serão produções mais livres e abertas, fruto de suas próprias escolhas. Mas altamente reveladoras de como eles percebem a História e o seu desenrolar. Eucídio Pimenta Arruda é professor da Universidade Federal de Uberlândia e autor do livro Ciberprofessor – Novas tecnologias, ensino e trabalho docente (Editora Autêntica, 2004). Saiba Mais - Bibliografia: ALVES, Lynn. Game over: jogos eletrônicos e violência. Bahia: Futura, 2005. JOHNSON, Steven. Surpreendente! A televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes: a sabedoria e os benefícios da TV e do videogame. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2005. SINGER, Dorothy G. & SINGER, Jerome L. Imaginação e jogos na era eletrônica. Porto Alegre: Artmed, 2007. TAVARES, Rogério J. C. Videogames: brinquedos do pós-humano. São Paulo: Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, 2006 (tese de doutorado). Saiba Mais - Sites: Gamecultura (www.gamecultura.com.br). Dedicado a professores, pesquisadores e interessados em discutir o papel dos jogos na cultura contemporânea. A participação é gratuita. Abragames (www.abragames.org). Organização sem fins lucrativos, reúne os desenvolvedores de jogos eletrônicos brasileiros.

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