Planta do engenho de descascar arroz do Sargento-mor Bernardo Toscano de Vasconcelos. (Fundação Bibioteca Nacional)
O que há de mais popular em nossa culinária do que um bom prato de feijão com arroz? Para os brasileiros, é um casamento tão perfeito que nem dá para imaginar esses dois ingredientes separados por um oceano e milhares de anos, nem isolados em pratos diferentes já em pleno período colonial. Entretanto, cada um teve sua própria história, e há versões conflitantes e surpreendentes para os usos e os hábitos em torno do arroz e do feijão antes de virarem arroz-e-feijão.
O arroz foi provavelmente a primeira planta cultivada na Ásia. Os registros mais antigos encontrados sobre o cereal aparecem na literatura chinesa há cerca de 5 mil anos. O sudeste da Ásia é apontado como seu local de origem, especificamente as províncias indianas de Bengala, Assam e Miamar, onde se conta com a maior variedade de tipos de arroz. Foi da Índia que a cultura se estendeu à China e à Pérsia, difundindo-se mais tarde para o sul e o leste, alcançando a Indonésia. O cultivo do arroz também é muito antigo nas Filipinas e no Japão. O cereal não era conhecido nos países do Mediterrâneo até que os árabes passaram a cultivá-lo no delta do rio Nilo. Depois o levaram à Espanha, de onde chegou à Itália, por volta do século VIII. Os portugueses provavelmente introduziram o arroz na África Ocidental, enquanto os espanhóis teriam sido os responsáveis pela sua disseminação nas Américas.
Alguns autores apontam o Brasil como o primeiro país a cultivar arroz no continente americano. Antes mesmo do contato com os portugueses, ele já era colhido pelos índios nos terrenos alagados próximos da costa, conhecido com o nome deabatiuaupé ou “milho d’água”. Há quem diga que integrantes da expedição de Pedro Álvares Cabral, adentrando por cerca de cinco quilômetros em solo brasileiro, coletaram amostras de arroz, confirmando registros anteriores do italiano Américo Vespúcio com referências ao cereal em grandes áreas alagadas do Amazonas. O historiador, antropólogo e jornalista potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) discorda dessa teoria: ele afirma que espécies nativas de arroz não faziam parte dos cardápios indígenas brasileiros e que o cereal tornou-se conhecido pelos nossos primeiros habitantes somente após a chegada e a instalação dos portugueses.
Na época da colonização o consumo de arroz não era significativo, e se mantinha longe do feijão e da farinha. A prática da orizicultura, ou cultura de arroz, só aconteceu de forma organizada no Brasil em meados do século XVIII. Apenas em 1766 a Coroa portuguesa autorizou a instalação da primeira descascadora de arroz na colônia, no Rio de Janeiro. Dali até a metade do século seguinte o país se tornaria um grande produtor e exportador.
O preparo do arroz apenas cozido, como acompanhamento, chegou de Portugal com Luís de Almeida Soares Portugal Alarcão Eça e Melo, segundo Marquês de Lavradio e 11º Vice-rei do Brasil, entre 1769 e 1779. Aqui encontrou a forma crioula de ser preparado: o negro africano de origem malê (oeste africano) primeiro o refogava em azeite com alho ou cebola para depois cozinhar.
O percurso do feijão, antes de compor a parceria célebre da culinária nacional, foi bem diferente. Tipos selvagens foram encontrados no México e datados de cerca de 7000 a.C., o que gerou a hipótese de que o feijão teria se disseminado dali para toda a América do Sul. Por outro lado, achados arqueológicos ainda mais antigos, de cerca de 10.000 a.C., revelaram feijões cultivados na América do Sul, no sítio arqueológico de Guitarrero, no Peru. São indícios de que o feijoeiro teria sido domesticado na América do Sul e depois levado para a América do Norte.
Feijões estão entre os alimentos mais antigos da humanidade. Cultivados no Egito e na Grécia, foram o prato preferido dos guerreiros da antiga Troia. Sua disseminação deve muito às guerras, uma vez que costumava ser parte essencial da dieta dos soldados em marcha. Grandes exploradores também ajudaram a difundir o uso e o cultivo de feijão para as mais remotas regiões do planeta. Os romanos o incluíam fartamente em suas festas gastronômicas, e o utilizavam até mesmo como pagamento de apostas.
Mas o prosaico feijão não era comida típica de portugueses, de índios ou de africanos. Em Portugal era mais comum o consumo de favas cozidas com arroz e carnes, principalmente ao norte. O feijão era consumido apenas ocasionalmente por camponeses, sempre em cozidos e ensopados. Os indígenas chamavam os feijões e as favas pelo nome genérico decanundá. De fácil cultura e muito prático por ser plantado ao redor das casas, ajudou a fixar a população indígena junto ao colonizador. Também os escravos tinham sua roça de feijões – “o feijão apareceu aos olhos da cunhã, cozinheira e amásia o reforço mais imediato para completar a refeição. Os filhos foram logo depois da desmama habituados ao caldo de feijão e a mastigá-lo com qualquer carne, na forma de cozido que o português amava repetir no Brasil. Os primeiros brasileiros não dispensaram o prato nacional por excelência”, comenta Câmara Cascudo, numa boa síntese da popularização do que viria a ser a feijoada.
A arte de misturar arroz e feijão não é exclusividade brasileira. O folclorista cubano Ramón Martínez afirma que certa feita “um negro de nação serviu arroz e feijões juntos, e quase cozidos ao mesmo tempo, pois os feijões eram frescos. Mais tarde cozinhou os feijões com mais cuidado, e adicionou o arroz, na mesma panela, deixando cozinhar em fogo baixo, e assim surgiu o prato favorito dos cubanos”. Chama-se moros y cristianos, “mouros e cristãos”. Os mouros seriam os feijões pretos e os cristãos, os brancos grãos de arroz. O nome é uma alusão à convivência pacífica entre essas religiões por muitos séculos na Espanha. O mesmo prato é consumido na República Dominicana e em El Salvador, onde se chamacasamiento, e é preparado com feijões vermelhos.
No Brasil não se sabe bem como começou essa união. Em 1954, Câmara Cascudo afirma ser apenas um “prato popular no Ceará”, enquanto Gustavo Barroso, escritor cearense, narra em 1940 que, “aos domingos, fazíamos ali um almoço ajantarado, de lamber o beiço; delicioso baião-de-dois com toucinho, isto é arroz e feijão cozinhados juntos”. O simples aproveitamento de restos de feijão cozido e arroz era comum em áreas rurais do Nordeste. O nome da combinação, “baião de dois”, ganhou o Brasil graças ao sucesso de Luiz Gonzaga – foi ele quem popularizou o ritmo, derivado de uma forma de lundu chamada “baiano”, e compôs com Humberto Teixeira, em 1950, a música “Baião de dois”.
Mais do que uma saborosa parceria, o encontro do arroz com o feijão assegura um importante arranjo de nutrientes. O que falta em um, o outro fornece. O arroz possui várias vitaminas do complexo B, carboidratos, cálcio, folato e ferro. O feijão prima pela proteína vegetal, é fonte de ferro, vitaminas do complexo B e de minerais fundamentais para o bom funcionamento do organismo. O arroz contém metionina, o feijão, lisina – aminoácidos que, juntos, são muito eficientes na reparação de tecidos do organismo. Enquanto o arroz sozinho pode aumentar as taxas de açúcar e de insulina na circulação, o feijão tem o poder de brecar esse efeito, mantendo a glicose estabilizada.
Na música e na literatura não faltam menções ao dueto em branco e preto. O poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) comparou o ato de escrever ao de cozinhar e separar o alimento: “jogam-se os grãos na água do alguidar/ e as palavras na folha de papel/ e depois, joga-se fora o que boiar”. Orígenes Lessa, no romance O feijão e o sonho (1938), conta a história de um poeta que se divide entre a arte e a luta diária pelo sustento. Ferreira Gullar, no poema Não há vagas, escreve: “O preço do feijão não cabe no poema/ O preço do arroz não cabe no poema”. O mesmo tempero de bons sambas – como o de Beth Carvalho criticando a moeda desvalorizada do país: “De que me serve um saco cheio de dinheiro/ pra comprar um quilo de feijão?” – serviu até ao rock paulistano, na canção do grupo Joelho de Porco: “Eu quero comer feijão com arroz/ Pra nunca, nunca, nunca, nunca/ Sentir fome depois”. Nada mais natural ao prato pra todos os gostos, símbolo do país da diversidade.
Fabiano Dalla Bona é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor deO céu na boca: Curiosidades gastronômicas, receitas, personagens religiosos (Tinta Negra, 2010) e Fama à Mesa (Tinta Negra, 2010).
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