O mais bonito dos clássicos.
“Casablanca” é indicado pela respeitada reunião de críticos de cinema do “American Film Institute” como o terceiro melhor filme norte-americano de todos os tempos. Não é por acaso. É uma obra fantástica do primeiro ao último dos 102 minutos. Um daqueles colossos que é preciso assistir com o bloco de notas à mão para pinçar as frases de efeito e citações retumbantes do roteiro feito por Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch.
Com a medalha de bronze dos críticos “no peito”– superado na lista da AFI apenas por “Cidadão Kane” e “Poderoso Chefão” — “Casablanca” é também o mais querido do público na fictícia categoria “ganhadores do Oscar de melhor filme”. Talvez por conter o mais estarrecedor triângulo amoroso do Ocidente, é um filme feito há 70 anos que continua atual como um folhetim trovadoresco.
Os vértices do triângulo isósceles são o americano Rick (Humphrey Bogart), o tcheco Victor Laszlo (Paul Henreid) e a judia sueca — com caráter duvidoso — Isla Lund, interpretada no talento e na beleza inegável de Ingrid Bergman. A versão original é do pré-guerra, mas se transformou num certeiro rascunho com o desenrolar do conflito que mudou conceitos e fronteiras no século XX.
A história de amor visível, embebida na velada crítica política conduzida pelo diretor Michael Curtiz, tem o nó melodramático amarrado exatamente no histórico 14 de junho de 1940, ponto do calendário em que os franceses vivenciaram uma de suas datas mais nebulosas no século passado.
Trata da ocupação nazista aos pés da Torre Eiffel e o momento em que judeus e dissidentes do terceiro Reich precisaram deixar a capital francesa, rumar para a sulista Marselha e, depois, de navio, ao interposto Casablanca, a cidade que, à época, era capital do império marroquino colonizado pelos franceses.
A primeira cena do filme — com uma fotografia límpida e distante do cinema “noir” que prevalecera em Hollywood na década anterior — mostra, através de um simbólico globo geográfico, imagens interpostas e a esclarecedora narração em “off”, sobre a rota de fuga para o deserto do norte da África.
Os clandestinos e fugitivos chegavam ao oasis de civilização ocidental interessados em conseguir um salvo conduto expedido pela fraudulenta polícia francesa, viajar de avião até Lisboa — a última escala no velho mundo — e rumar de transatlântico para as Américas, em especial, à do Norte.
Além do roteiro simplesmente impecável e as interpretações muito superiores à média da época — e até as atuais dos filmes do mesmo gênero — a apaixonada plateia atemporal de “Casablanca” serve como sensor da importância deste filme para as antigas e atuais gerações. Uma influência cristalina para artes de modo geral, e em especial, a literatura, a pintura e o próprio cinema derivativo que surgiu do clássico de 1942.
“Casablanca” é a materialização de uma década do cinema Hollywoodiano que prezava pelos estúdios estapafúrdios, os sobretudos de couro cobrindo os ternos brancos, o clichê romântico e descarado com músicas melodiadas e chorosas — caras e bocas femininas, faces angulosas, galãs com voz de locutores de rádio AM, e beijos que chegam a derrubar taças.
O interesse por “Casablanca” continua intocável e impulsiona, até hoje, sete décadas depois, uma plateia sedenta por séries de TV e edições de luxo com extras, making off e entrevistas recheadas de informações superficiais que enchem os olhos e as mentes dos apaixonados por este cinema glamoroso.
Ainda assim, com um modo de produção e roteiro mais denso e com um pouco mais de massa cinzenta que as produções derivativas atuais.
Filmado em um amplo e milionário estúdio da produtora Warner — tão fidedigno quanto o próprio Saara — e embalado como uma pluma no ar ao som de “As Time Goes by”, o filme do diretor Michel Curtiz tem a facilidade de nos transportar do mundo conturbado para uma vida mais singela sem os horrores da guerra que se avolumava à época.
Os figurinos de Bogart e Ingrid Bergman, tão engomados como se eles desfilassem por Nova Iorque no inverno, é acrescido da boa interpretação de Claude Rains (indicado, porém derrotado no Oscar de 1943) como o cínico, bajulador e romântico, tipicamente francês, chefe de polícia Renault.
Cheio de cicatrizes da vida, Renault é um oportunista observador que se alia ao comando militar alemão para prevalecer no poder, mesmo vislumbrando o mal histórico que seu país sofria ao ser invadido por uma nação vizinha. “Sou como o vento. E o vento forte vem de Richy”. Quando o vento mudar, questiona o major: “O Reich nunca permitirá que isso aconteça”.
Richy era o oficial alemão encarregado por Berlin para realizar uma batida militar para prender o assassino de dois mensageiros germânicos que transportavam salvo-condutos assinados, à época, pela maior autoridade francesa, o general De Gaulle.
A despeito de todas as ironias lançadas por Renault, é talvez esta a definição “sou como o vento” é mais simbólica para o desfecho do filme. E, de fato, a centelha da mudança não partiu de Berlim. “Louis, esse é o começo de uma bela amizade”, sintetiza Rick/Bogart.
Os valiosos documentos diplomáticos eram traficados por Ugarte (Peter Lorre, em uma interpretação curta, mas profunda e com frases célebres como: “Tenho muitos amigos em Casablanca, mas confio só em você. É o único deles que me despreza”).
O personagem é um homenzinho franzino que concorre com as autoridades francesas na corrupção e na venda das “cartas de alforria” para o Novo Mundo.
São os documentos assinados pela alta política francesa que atraem para a cidade portuária de Casablanca o casal sofisticado Ilma Lund e Victor Leszlo, dois judeus perseguidos na Europa e interessados na carta de segurança para voarem para Lisboa, e depois, cruzar o Atlântico até Nova Iorque.
Por uma das idas e vindas do destino — e principalmente, do roteiro vencedor do Oscar feito por Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch — Ilma se reencontra com seu amor parisiense exatamente no americanizado Café do Rick. É daí que surge a frase mais famosa do filme e uma das mais destacadas da história do cinema: "Of all the gin joints in all the towns in all the world, she walks into mine", ou na tradução, “De todos os botecos, de todas as cidades, no mundo todo, ela entra logo no meu”.
Ao entrar no boteco do Rick — que na verdade, é bem mais sofisticado que 99% dos botecos internacionais — Ilma já pede ao pianista Sam (Dooley Wilson) que reviva o passado, há muito colocado em segundo plano por Rick. A cena é uma das mais bonitas e sensuais do filme.
O filme também tem elementos visuais — e políticos — muito simbólicos como o patriota Laszlo liderando a escória do continente cantando a “La Marselhesa” para abafar a cantoria nazista no Café do Rick e restaurando o fervor patriótico dos mais rastejantes colaboracionistas.
Também há cenas antológicas como a ligação eternamente incompleta do major alemão Strassere, vivido por Conrad Veidt; o gordo garçom de Rick, S.Z Sakall, um austro-húngaro cheio de trocadilhos alemães e até uma frase simbólica para um casal da Europa central que quer viver nos Estados Unidos e mal arranha o idioma inglês: “Vocês se darão muito bem na América”, diz, em tom jocoso e ácido.
No hall de coadjuvantes célebres também está o empresário Ferrari, uma mistura incomum de italiano e árabe vivido por Sydney Greenstreet. Ele é o dono do boteco de fachada “Blue Parrot” e controlador do tráfico de escravos ainda remanescente na África em meados do século XX.
No geral, “Casablanca” é cheio de flashbacks, diálogos intensos e complexos — que são difíceis de acompanhar plenamente sem os recursos ‘play/pause/fw/ff’ do controle remoto — truques de câmeras, sombras simbólicas e planos detalhes — como o momento que Rick esconde os salvo-condutos dentro do piano de Sam.
O roteiro também abre, à época, um paradigma em inserir um longo flashback exatamente no meio do filme. Mesmo assim, é tão bem estruturado que o conjunto final parece impecável como “Cidadão Kane” de Orson Welles.
Um filme muito bem elaborado, que a Guerra Mundial que desenrolara meses depois o projetou para a posteridade. A história insuperável e atemporal, que é sintetizada nas frases — quases bordões — de Rick na voz de Bogart. “Não sou nobre, mas os problemas de três pessoas não são muito neste mundo louco” e, evidentemente, “Here's looking at you, kid”, traduzido como “Estou de olho em você, garota”.
“Casablanca” é um clássico com qualidades e méritos indiscutíveis. Um roteiro que não cansa ninguém há 70 anos.
COMENTÁRIOS