O Limpo de o sujo: uma história da higiene corporal
O Limpo de o sujo: uma história da higiene corporal
Joseane Maria Parice Bufalo
Resenha de: VIGARELLO, Georges. O Limpo e o sujo: uma história da higiene corporal.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[...] Na Idade Média existiam as estufas e os banhos, os quais
não eram entendidos como estabelecimentos de higiene, estes faziam parte de
prazeres específicos. A história das estufas está ligada ainda a uma outra
história: a do tempo lúdico e festivo, a dos prazeres e do jogo. Nesse caso,
estão envolvidas também inevitavelmente, ilegalidade e transgressão (p. 34).
Portanto, esses locais, pertenciam ao mundo do prazer, dito prosaicamente por
um dono de estufas alemãs do
século XV: Água por fora, vinho por dentro, alegremo-nos (p. 37). Sendo
assim, a cultura das estufas e dos banhos não podia ser considerada como a da
higiene ou ainda, da ordem. No entanto, isso não quer dizer que nelas não
havia lavagem e limpeza alguma, embora o objetivo fosse a prática festiva.
Existia também nessa época, em pouquíssimos lugares, a prática
privada do banho, a qual não se compara às estufas. No entanto, tanto as
estufas quanto os banhos desaparecem pelo motivo do imaginário da água e as
representações do corpo. Havia um grande temor de os organismos serem
penetrados.
Nesse período (séc. XV-XVII), se deve pensar a limpeza com
exclusão de qualquer ablução. E preciso reconhecer uma limpeza corporal, mas
que se fazia através dos espaços, das roupas de baixo, dos acessórios
diversos e assim não o corpo propriamente dito era lavado ou limpo. É a
roupa-branca que se lava (p. 66).
Essa limpeza se refere a um sentido social e médico, pois tanto
a roupa como a ausência de doença é o que indica a higiene corporal. Portanto,
estas características, que passam pelos objetos, no tratamento com o corpo,
trazem consequências sociais, haja vista que deixava de existir a limpeza
para os mais pobres.
A limpeza girava em torno da aparência, importando apenas o que
o outro via. Daí o funcionamento de estratégias de ilusão como: penteados,
maquiagens e os próprios perfumes a partir do século XVII, os quais além da dissimulação
ou do prazer, traziam também a purificação. O perfume apaga tanto quanto dissimula
(p. 100).
A partir do segundo terço do século XVIII, o banho tem uma nova
presença. A prática da água se transforma. Embora ainda se pensasse que ela
penetraria o corpo, atuando sobre seus órgãos e suas funções, esse novo
interesse se traduzia por um grande número de monografias médicas a seu
respeito, atestando a importância do tema, teoricamente. No entanto, na vida cotidiana
o banho se integrou de maneira específica, isto é, atingindo apenas a nobreza
e em especial as mulheres. Mais do que nunca esse banho quente dos gabinetes
da nobreza é antes de tudo prática de mulheres (p. 115). Há várias passagens
no livro em que Vigarello relata a aproximação do banho como sendo prática
feminina.
Essas práticas refletiram um longo percurso teórico e cultural,
após o século XVIII, e no final deste período, o banho começou a ter um papel
explicitamente higiênico. O corpo, então, adquire uma imagem nova e o
banho é um indício de um código, até então inédito, de suas eficácias
corporais. Assim, a limpeza já não se fazia apenas para o olhar. O autor
faz uma analogia entre as máquinas a vapor e as representações dos corpos humanos,
dizendo que mais ou menos consciente se passa a codificação das eficácias corporais:
a saúde supõe uma boa energia de combustão. Do banho frio ao banho quente, portanto,
também foi o imaginário das energias que se reconstruiu (p. 191).
Mas mesmo nessa época, ainda se questionava sobre a prática de o
banho ser imoral. O pudor estava mais diretamente no desnudamento dos
corpos exigido pelas abluções de limpeza e sobretudo nas apalpações que elas
provocam. Portanto, difundir a prática do banho é também convencer que ela
não ofende o pudor.
Contudo, depois dos terrores da peste, o papel do banho se
inverteu definitivamente. A água passou a se desempenhar como ação preventiva.
Entretanto, os mais pobres e mais expostos são os que menos obedeciam às
regras de higiene.
No final do século XVIII, foram iniciados atos de higiene para
alterar o espaço público. Então começou a se pensar em banhos populares e
estes eram vistos antes de tudo como uma medida para melhorar o espaço.
Pensava-se nos banhos populares como sendo diferentes dos
nobres. O que importava era que se fizesse uma limpeza das ruas, dos espaços
coletivos. O uso da água era pensado nessa época para corrigir o ar e
mais importante ainda era a relação entre o salubre e o insalubre.
As normas, há muito tempo aplicadas pelas elites, começam a ter
um papel nas instituições destinadas à massa. Uma limpeza já antiga começa a
existir como se a prática "pensada" para o povo devesse implicar
uma defasagem e um tempo de latência (p. 167).
O banho
se instalou lentamente nas práticas da elite, bem no final do século XVIII, o
que anunciava o caminho que seria desenvolvido no século XIX. Em meados do
século XIX foram tomadas medidas concretas para corrigir a falta de limpeza
indigente. Assim, se transformavam os espaços públicos e a pedagogia se
prolongava na norma imposta aos instrumentos e aos espaços. O planejamento
urbano passou a ser em função do consumo de água, a qual se tornou, como
nunca o foi, um problema de estratégia coletiva, para impedir a doença e trazer
a saúde.
No século XIX a higiene passou a ocupar um lugar inédito, a ser
uma disciplina específica dentro da medicina. Mesmo já no final do século
XVIII, o médico se aproximou do político, desempenhando um papel na disposição
das cidades e de diversos locais públicos.
As disparidades sociais já não se verificavam apenas entre o
banho e as abluções parciais, mas também entre vários tipos de banhos. Nesse
período, diferente do século XVIII, o banho não significava tratar apenas do
corpo, mas sobretudo de não subverter a ordem. Havia uma moralização da
limpeza: o objetivo não era outro senão transformar os costumes dos mais desfavorecidos.
O autor
afirma que, quanto à higiene, a resposta é antes de tudo pedagógica, num sentido
"catequizante". A sujeira era tratada como sendo um efeito da
preguiça, contrariamente do que se pensava até o século XVIII, quando o banho
era visto como uma prática do ócio. Criou-se um manual de higiene, o qual se tornou
um texto de estudo. Assim, sucessivamente em todas as instâncias educacionais
se trabalhou com o princípio de ensinar o outro, adequando-o, disciplinando-o
pois um povo amigo da limpeza logo o será da ordem e da disciplina (p. 216).
No final do século XIX a água ganhou uma legitimidade científica
que nunca mais foi ultrapassada e o banho adquiriu um espaço que é totalmente
privatizado. Como se pode ver, o banho tem duas características básicas no
decorrer dos tempos: prazer e higiene. [...]
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