Cliente oculto no shopping: "Ei, olha pra mim!"
Será que um indivíduo simples, de chinelo e vestindo roupas já bem surradas, recebe o mesmo tratamento que um engravatado no shopping? Fizemos o teste. Saiba o que aconteceu
Já tomando distância do meu editor, Fábio Bandeira de Mello, que me acompanhou até avistarmos as primeiras vitrines, comecei a estudar o ambiente e ver mais ou menos por onde começar, seguindo na medida do possível o roteiro previamente elaborado. A ideia ali era entrar em lojas de diferentes segmentos e níveis, e ver, de fato, como um cara simples seria atendido em cada uma. Como o shopping é, do ponto de vista da oferta, relativamente democrático (com lojas bem caras e outras mais acessíveis), sabia que seria possível traçar alguns paralelos. Com isso em mente, fui lá.
Matéria foi publicada na edição 16 da revista Administradores (Imagem: reprodução)
No térreo, tradicionalmente, estão as lojas mais populares. A primeira em que parei foi uma de calçados. Mas, se o objetivo era ser maltratado para ter uma história interessante para contar aqui, não deu certo. Mal parei na vitrine e já veio um vendedor me dando boa noite. Como vi que ali me tratariam bem, acabei não demorando muito. Mas, antes de sair, deu tempo ainda de outro atendente se aproximar e, simpaticamente, dizer que, caso eu precisasse de alguma coisa, poderia chamar.
Quase em farrapos como eu estava, cheguei a acreditar que os seguranças poderiam me tratar, no mínimo, como um suspeito. Foi então que resolvi pedir informação a um deles. Caprichando nas gírias e no "sotaque malandrês", perguntei a um deles onde ficava o banheiro mais próximo. E aí o indivíduo teve a petulância de, também muito educadamente, perder uns segundos de seu tempo me explicando detalhadamente como chegar ao toilette. Agradeci, abaixei a cabeça e sai.
Próximo andar
Com todo mundo me tratando bem naquela área, peguei a primeira escada rolante e decidi passar logo para o nível 2 da ação: as lojas intermediárias. Caí em cheio na entrada da filial de uma grande rede de móveis e eletrodomésticos. Cresci logo os olhos para uma TV LED 3D que chamava atenção na entrada da loja. Parei em frente a ela e comecei a ler os detalhes. No momento, havia uns dois vendedores atendendo outros clientes e, por alguns minutos, fiquei sozinho. Mas logo que ficou livre, um dos atendentes veio até mim, falando sobre o produto, dando detalhes sobre a tecnologia e já adiantando as incontáveis formas facilitadas de pagamento que eu poderia ter.
Foi aí que comecei a desconfiar dessa história de preconceito. Principalmente agora, com a economia brasileira bombando. A turma já tomou consciência de que a classe C - e até a D - está endinheirada, ou pelo menos com crédito suficiente para ir às compras. "Não dá mais para tratar ninguém mal simplesmente por achar que não vai sair dali uma venda, porque todo mundo agora pode comprar", pensei.
Mesmo cada vez mais descrente na possibilidade de encontrar boas histórias para a pauta, dei sequência à caminhada e resolvi parar numa loja de ternos, mas já com a certeza de que o cara ia pensar: "olha lá que oportunidade: a classe C não quer só TV de LED, quer andar na beca, bem elegante". Então, parei. Olhei. Caminhei em frente à vitrine. Entre os manequins, vi que uns cinco vendedores conversavam lá dentro. Suspeitei até que um tivesse me visto. Mas, para tirar a prova, decidi entrar. Entrei, olhei, esperei. Opa! Ali a coisa começou a mudar de figura.
Dos cinco desocupados que jogavam conversa fora lá nos fundos da loja, um deles só se dignou a vir me atender quando comecei a desarrumar as camisas empilhadas em um dos armários internos. Mesmo assim, ele desistiu no meio do caminho, quando um desenvolto usuário de camisas Lacoste entrou na loja e seguiu em direção ao lado contrário de onde eu estava.
Aquele primeiro desprezo me animou e aí fui com tudo para o teste da praça de alimentação. Quase sempre que alguém passa em frente aos restaurantes e lanchonetes, é comum as atendentes exibirem o cardápio e convidarem a conhecer as ofertas. Então, para mostrar com bastante ênfase que queria comer alguma coisa, passei lentamente por toda a circunferência do ambiente, olhando para todos os menus afixados nas paredes. Em alguns casos, me atrevi até a olhar nos olhos de uma vendedora. E nada. Quase no fim, ao me ver com ar de humilhado depois de ter sido preterido por uma garçonete, que me deu as costas para oferecer todo o brilho dos seus olhos a um casal aparentemente mais bem abastado, a funcionária de uma cozinha pegou um cardápio no balcão e disse: "pode olhar, moço".
O relógio de R$ 3 mil
Definitivamente, a coisa começava a mudar de figura. Segui, então, com toda a estranha felicidade de estar sendo mal atendido, para uma loja de relógios. E foi aí que o bicho pegou. Assim como nos estabelecimentos anteriores, fui completamente ignorado. Havia três vendedoras conversando ao lado de um balcão, mas todo esforço que fizeram foi o de não me deixar perceber que elas haviam me notado. Para fazer com que elas mesmas se denunciassem, resolvi me fazer uma vergonha: olhei para o preço de uma peça e esbravejei: "Três mil conto? Tá doido! Lá no centro acho um igualzinho por 10 reais". O trio não aguentou e soltou aquela risada, me fitando com olhares que dispensavam qualquer palavra. Com o rabo entre as pernas, sai cabisbaixo, saltitando de alegria por dentro. Minha matéria estava salva.
Pouco mais à frente, vi logo as duas mais caras lojas de roupas de todo o shopping. A 20 metros, já senti que ali estavam escondidas boas histórias. E não deu outra. Dessa vez, nem me dei ao trabalho de fazer o teste da vitrine e entrei logo. Já na primeira, fui mais uma vez ignorado e, por persistir na presença, comecei a assustar a pobre moça do caixa, que logo chamou o único vendedor homem presente naquele momento e lhe disse algumas coisas no ouvido, sem me perder de vista. O homem, então, se dirigiu aos fundos da loja e eu saí, já começando a temer uma aproximação de seguranças (o que estragaria meu trabalho no melhor da festa).
Nesse momento, decidi, estrategicamente, mudar de piso. Foi então que cheguei ao setor de serviços, no último andar. Lá, entrei na faculdade, onde fui pedir informações sobre cursos: "dona, eu queria saber aí se vocês têm uns curso técnico, profissionalizante. É que eu tô desempregado e queria ver se eu aprendia uma profissão". E ela, fazendo uso de toda a estupidez que tinha em si, me respondeu, apontando para o lado oposto: "sei não. Vá perguntar lá dentro". Fui. Mas não havia ninguém por lá. Vi, entretanto, por um vidro, que por trás da mulher que me atendeu, uma moça e um senhor com crachás estavam conversando. Apesar de tentar atrair seus olhares para perguntar sobre o tal curso, não tive sucesso.
Já com material suficiente e temendo um baculejo dos seguranças, pois provavelmente eles já haviam sido avisados pelo pessoal da loja de roupas sobre minha presença estranha, decidi ir embora. Só que as coisas não acabaram por aí. Fiquei curioso para saber uma coisa: como toda essa gente com quem lidei nesse dia me trataria se eu estivesse de terno e gravata?
Sete dias depois
Sexta-feira, passava das 18h. Uma semana depois de passear com minha camisa surrada, o short manchado e o boné desbotado, entrei triunfante (neste momento usufrua da sua capacidade de imaginar em câmera lenta), todo na beca, pela porta da frente.
Passo a passo, refiz todo o roteiro de uma semana atrás e o resultado foi, no mínimo, engraçado. Na loja de calçados, me atenderam da mesma forma nos dois dias. Parabéns para esses vendedores. Dei o maior valor. Na filial da rede de eletrodomésticos, entretanto, aconteceu algo inusitado: fui melhor tratado quando cheguei arrastando o chinelo. Não sei se simplesmente dei o azar de pegar um mau vendedor na segunda vez. Mas sai de lá com a suspeita de que os juros do crediário pagos pelo "eu mais pobre" poderiam ser mais interessantes que a possível compra à vista do "eu mais rico".
Como iria jantar por lá mesmo, mudei o roteiro e deixei a praça de alimentação para o fim. Passei, então, pela loja de ternos, onde rapidamente fui atendido. Mas foi lá onde percebi o primeiro indício de um fato que viria a comprovar mais tarde: independente da roupa do cliente, alguns vendedores atendem realmente mal. Nesse caso, por exemplo, disse que queria uma camisa de uma cor que não tinha lá. A moça me respondeu dizendo apenas que infelizmente não tinha, sem fazer nenhum esforço para me mostrar que poderiam existir outras opções.
De volta aos relógios
Na sequência, voltei à loja de relógios. Confesso que estava ansioso para esse momento. E foi um dos mais excitantes, de fato. Coloquei o primeiro pé na loja e a vendedora que mais havia zombado de mim na semana anterior me abriu um sorriso imenso: "Olá, boa noite! Posso ajudar?". Sem nenhum ressentimento pelo ocorrido do último encontro, pedi para ver um relógio feminino para presentear minha namorada.
Ela logo se apressou em abrir a vitrine, de onde tirou uma peça que, segundo ela, era uma das mais caras da loja, mas que valeria a pena. Disse que seria um presente encantador e que mulher nenhuma resistira aos lindos detalhes feitos com pedras preciosas. Já contente com a cena, não perdi muito tempo. Agradeci o atendimento e, para não sair com a impressão de que entrei só para olhar, pedi um cartãozinho, perguntei o nome e prometi que voltaria para comprar (ledo engano).
Repeti o mesmo modus operandi em todos os estabelecimentos seguintes. Na loja de roupas em que levantei suspeitas na primeira vez, fui recebido como um velho amigo da família. A moça do caixa chamou novamente o único vendedor homem presente no momento. Mas dessa vez não se preocupou em falar baixo: "fulano, por favor, atenda aquele senhor que acaba de entrar". Nessa hora, juro, quase comecei a rir. E então aproveitei a oportunidade para pôr em prática uma pequena vingança. Pedi para ver quase todas as camisas visíveis na vitrine e ainda boa parte das que estavam bem dobradas nas prateleiras internas. Depois disse: "obrigado. Queria só dar uma olhada mesmo. Até logo".
Agora quero um MBA!
Já feliz da vida, segui rumo ao destino final. Novamente, entrei na faculdade e me dirigi à moça da recepção. Dessa vez, não era a mesma pessoa. Cumprindo a formalidade, pedi informações sobre MBAs e, depois de demonstrar um certo despreparo para a função, a recepcionista apontou a moça da sala ao lado, aquela que uma semana antes vi pelo vidro. Naquele instante, lá de dentro, ela já me olhava atentamente. Nos entreolhamos e ela me chamou. Na hora, percebi logo: foi amor à primeira vista (pelo que ela pensava ter no bolso ou na minha conta bancária imaginária).
Como um cavalheiro, cruzei a porta e fui até sua mesa: "boa noite?", disse eu. "Olá, boa noite! Tudo bem?", disse a garota. Daí para a frente, mandei a mesma conversa. Só que, em vez de cursos técnicos profissionalizantes, pedi sugestões de bons MBAs. Ela, daí, tirou um monte de panfletos da gaveta com informações sobre diversos cursos. Enquanto eu olhava, já foi logo perguntando meu nome, e-mail e telefone (e eu fiquei imaginando de a próxima pergunta ser: "vai fazer o que hoje à noite?").
Antes de eu decidir por uma opção, o mesmo senhor que estava ao lado dela na primeira vez chegou junto e começou a fazer recomendações, falar sobre formas de pagamento e até mesmo tentar me convencer a fazer duas especializações ao mesmo tempo (mal sabendo eles o quanto o "eu real" está suando para pagar a que está cursando!). Satisfeito, agradeci a gentileza e, como um bom cafajeste, pedi o telefone e prometi ligar. Em seguida, dei as costas e sai por aquela mesma porta de vidro, para nunca mais voltar.
Para fechar a noite em grande estilo, voltei à praça de alimentação e, como um rei chegando a uma festa em seu reino, fui cortejado por praticamente todos que trabalhavam ali em frente aos balcões. Depois de percorrer todo o espaço e rejeitar um por um, comi um sanduíche no restaurante mais barato e fui embora.
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