Defesa do secularismo


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Texto de Daniel Piza publicado originalmente no Estadão
Assim como me queixei do tom pregador de alguns livros pró-ateísmo recentes, como os do biólogo Richard Dawkins, que chegou a dizer que queria converter os leitores a abandonar as religiões (converter, afinal, não é tarefa que caiba a um cético), vou me queixar agora de algumas reações contrárias.
O novo livro do talentoso e eclético Alain de Botton, Religião para Ateus (editora Intrínseca), é um exemplo. Dizendo-se ateu, no sentido de alguém que tem certeza de que Deus não existe – e não agnóstico, aquele que não acredita na existência de fenômenos sobrenaturais –, ele tenta mostrar valores que a religião criou ou consolidou e deveriam ser recuperados. Mas parte de um pressuposto bem equivocado: a atual fragilidade ética e estética teria sido causada pela fuga da religiosidade, pela defesa de um poder que não impõe crença.
Não é de hoje que o secularismo é apontado como o culpado do individualismo e da ansiedade que tanto vemos ao redor. Desde Max Weber, que falou no “desencanto” inerente à modernidade, muitos autores acham que a perda da dimensão religiosa reduziu tanto o senso de grandeza como a virtude da humildade na escala humana.
Se no final do século 19 o filósofo alemão Nietzsche decretou que Deus estava morto, no início do século 20 o poeta americano T.S. Eliot – que se definia “classicista, anglicano, monarquista” – argumentou que religião e tradição criavam uma estrutura sem a qual não poderia haver nem inovações como as que ele mesmo fez em poemas como The Waste Land.
Na realidade, o argumento de que a modernidade deposita peso demais nos indivíduos é mais antigo do que isso; pode ser lido em escritores como Jonathan Swift, no começo do século 18, quando Voltaire já ironizava as igrejas.
Alain de Botton se diz ateu, mas se revela conservador como esses antecessores. Fala em ter “reverência seletiva por rituais e conceitos religiosos”, parando de acreditar em crenças “outorgadas do alto” e lembrando que elas foram inventadas pela humanidade por necessidades de viver em comunidade e lidar com o sofrimento.
Até aí, tudo bem, afinal não são poucos os cientistas atuais – e seculares – que mostram como a religião atendeu a demandas evolutivas do cérebro humano em relação à natureza que não compreendia (donde o medo dos mortos, a atribuição de vontades a fenômenos, etc). Mas o ensaísta anglo-suíço enumera comportamentos de hoje que seriam culpa da sociedade secular.
“Desenvolvemos um medo em relação à palavra moralidade”, começa, esquecido de que esse medo foi mais do que justificado pelos estragos que o moralismo religioso causou no julgamento de etnias, sexualidades e, em especial, de outras religiões.
“Nós nos irritamos com a perspectiva de ouvir um sermão”, continua, como se eles tivessem acabado ou como se não ouvíssemos com prazer secular as palavras de um Vieira e as melodias de um Bach. “Fugimos da ideia de que a arte deveria inspirar felicidade ou ter uma missão ética.” Bem, a maioria das pessoas ainda prefere os finais felizes e edificantes, como sabe Hollywood ou a TV Globo.
A lista vai longe. “Não fazemos peregrinações.” Muitos ainda vão caminhar em Santiago de Compostela ou pagar promessas em Aparecida; outros viajam para outras culturas e visitam locais sagrados com admiração histórica, ainda que sem partilhar das crenças. “Não podemos construir templos.” Os antigos são patrimônios turísticos e em alguns lugares eles continuam a ser erguidos, embora quase sempre sem o menor traço do bom gosto do passado, exceção feita a arquitetos como Tadao Ando (autor de pequena e reveladora igreja protestante perto de Osaka).
“Não temos mecanismos para expressar gratidão.” Mas quem disse que orar é o único? “A noção de um livro de autoajuda tornou-se absurda para o erudito.” Talvez porque quase todos promovam a autodefesa, não raro levando o leitor a pensar demais em si próprio. “Resistimos a exercícios mentais.” Nada indica que a preguiça mental era menor quando os padres ditavam o que pensar e como fazer. “Estranhos raramente cantam juntos.” Não é fato; em shows, estádios e escolas, por exemplo, o gesto ainda é recorrente.
Ele está parcialmente certo quando escreve que não há tantos equivalentes hoje para esses rituais, mas é impreciso ao qualificá-los de “reconfortantes, sutis ou apenas encantadores”. Como um descrente que já visitou muitas das mais belas catedrais do mundo, sei que preciso separar o prazer estético dos valores morais embutidos ali – e isso não faz de mim um ser menos moral.
Não preciso ir a uma missa e comungar dos sermões para “descartar o pecado do orgulho”, na expressão de Alain de Botton; na verdade, estou ainda mais atento para ele se não acredito que ele possa ser redimido por uma confissão e eu seja premiado na vida pós-morte. Ele também diz que outra lição das religiões é “aceitar a profundidade de nossos sentimentos destrutivos, antissociais”, mas até onde sei foi a modernidade que se encarregou de mostrar – em autores como Freud e Conrad – que o sujeito “civilizado” e “respeitável” pode ser mais bárbaro que os bárbaros.
Há no livro conclamações a depositar em estatuetas sagradas os ideais de conduta, recorrer às obras culturais com a mesma intensidade com que se recorria aos textos sagrados, frequentar retiros religiosos para meditar, criar instituições para “ensinar a arte de viver”, ler em Pascal uma descrição de nosso “estado pecaminoso e lamentável”, ir aos museus “para fazer com que sejamos bons e sábios”, redesenhar hotéis, repensar a publicidade, etc. Cada capítulo é dedicado a esses programas de comportamento, como se tivessem validade universal e nos levassem a uma perspectiva transcendente.
Sem comentar o que há de utópico em algumas propostas, vejo antes de mais nada que Alain de Botton parece se dirigir a um tipo de pessoa que está longe de ser maioria no planeta. Segundo pesquisa Ipsos, mais de metade da humanidade acredita em Deus e nada menos do que 78% acredita em “entes ou forças superiores”. Nos EUA, 40% dos habitantes defendem o criacionismo; no Brasil, 47%. Como então botar a culpa do egoísmo contemporâneo na mentalidade secular?
Como ele, lamento muitos aspectos da vida atual, como o desrespeito ao espírito público, a doença juvenil do consumismo, a troca de princípios por vantagens, a exaltação de aparência e dinheiro em detrimento de caráter e conhecimento, o excesso de ansiedade. Também me aborreço com as propagandas que falam em “valor das ideias” e os spas que só dão valor ao corpo e não à mente.
Assino muitas de suas opiniões, como a de notar que o exagero de esperança, o otimismo industrializado, gera frustrações maiores. Mas não vejo a mesma causa para tudo isso e descreio de suas soluções. Não há necessidade de retomar ritos e símbolos religiosos para cultivar virtudes como “coragem, amizade, fidelidade, paciência, confiança ou ceticismo”, que não foram inventadas apenas pelas religiões. E muitos dos problemas também se devem à herança de dogmas e consolos nada sutis, como a expectativa de perfeição, a aversão à discordância, a noção de “povo eleito”, a confusão do sentimentalismo – condutas que levam tantos a transferir para grupos e coisas uma presunção de identidade. Não precisamos de mais mediações; precisamos de mais clareza.

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