A última que morre

Poder manter a esperança no meio da tormenta e enxergar sempre um Deus com os braços abertos, é a razão de uma confiança irrestrita em tempos melhores.
Por Vanessa Portella
Em todo início de ano, bem como em momentos de grande dor e comoção por tragédias – como a ocorrida na Região Serrana do Rio de Janeiro mês passado, deixando um saldo de pelo menos 800 mortos, fora os desaparecidos –, é comum falar-se em esperança. Por mais contraditório que pareça, é na euforia e nos grandes percalços da vida que ela costuma ser mais invocada, talvez numa tentativa inconsciente de procurar um ponto de arrimo, imaginário que seja, para suportar a perda ou alicerçar projetos. Quando tudo parece bem ou perdido, a esperança costuma dar as caras, levando as pessoas a acreditar que tudo pode melhorar. Já se disse que ela é um dos bens imateriais mais preciosos do ser humano – e, apesar de todas as dificuldades, os brasileiros são campeões de esperança. Entre 132 países pesquisados pelo instituto Gallup World Poll, o Brasil obteve a nota mais alta entre as pessoas entrevistadas que disseram ter esperança no futuro.
“O brasileiro inicia a nova década com muita esperança e altivez”, atesta o sociólogo Rodrigo Mendes Ribeiro, diretor do instituto de pesquisas República e coordenador do Projeto Brasilidade. A pesquisa aferiu o grau de autoestima do brasileiro. “Aumentou a percepção de melhoria”, continua o estudioso. Sem esperança, de fato, parece impossível fazer planos, sonhar – enfim, viver. E ela caminha lado a lado com a fé. A Bíblia é repleta de passagens que estimulam a esperança e relatam as experiências de gente que enfrentou duras realidades, mas encontrou na esperança a motivação para seguir em frente. O rei hebreu Davi, por exemplo, fez do Salmo 40 uma ode à esperança: “Esperei confiantemente pelo Senhor, que se inclinou para mim e me ouviu quando clamei por socorro”. Já o grande profeta Isaias declarou que confiar em Deus é um tônico para o ser humano: “Aqueles que esperam no Senhor renovam as suas forças. Voam alto como águias; correm e não ficam exaustos, andam e não se cansam” (Isaías 40.31).
Séculos mais tarde, foi a vez de o apóstolo Paulo enaltecer o valor da esperança, ao incluí-la na lista das maiores virtudes espirituais: “Assim, permanecem a fé, a esperança e o amor” (I Coríntios 13.13). Mas manter a esperança em dias de incerteza e tribulação como os de hoje parece ser não apenas um exercício de fé, mas também uma disciplina mental – e é algo cuja importância tem sido reconhecida. Cada vez mais, estudos vêm sendo elaborados na área das ciências sociais, da religião e da psicologia sobre os benefícios e influências que a esperança exerce sobre o indivíduo. Para se ter uma ideia, até um ranking do gênero, a Escala de desesperança de Beck, foi elaborada pelo psiquiatra americano de origem judia Aaron Temkin Beck, considerado um dos pais da teoria cognitiva, para analisar, entre outros aspectos, a expectativa negativa de uma pessoa em relação ao futuro, a curto e longo prazo. A escala foi inicialmente desenvolvida para medir o pessimismo de doentes psiquiátricos em risco de suicídio, mas hoje avalia diversos níveis de esperança e sua interferência na saúde mental e até física do indivíduo.

“DEUS NO CONTROLE”
Para os cristãos, a esperança não é apenas um estado de espírito, aquele tipo de sentimento emocional que leva à crença em resultados positivos e coisas boas por acontecer. Na verdade, ela se confunde com a fé, que na definição bíblica é a “certeza de coisas que se esperam e de fatos por acontecer”. “A esperança cristã afirma a vida abundante com Cristo, apesar das lutas, perdas e sofrimentos”, define a missionária Eleny Vassão, presidente da Associação Cristã Evangélica Hospitalar (ACEH), que trabalha justamente levando esperança às pessoas. “Não importa o que vem pela frente, Deus está no controle para nos dirigir, dar forças para enfrentar tudo com paz e nos tornar mais fortes”. Segundo ela, o cristão tem esperança a partir da certeza de que não está sozinho e de que as situações por que passa são conhecidas por Deus.
“Quando falamos sobre esperança, logo pensamos no futuro, mas esquecemos que ela influencia o modo como vemos o presente”, assevera o estudante Ricardo Porfírio, que está cursando o último ano de teologia no Seminário na Comunidade Presbiteriana Vila Olímpia, em São Paulo. Sua dissertação de conclusão de curso versa justamente sobre o valor da esperança (ver quadro). “A esperança não tem a ver somente com a vida futura, mas também com o presente, ou seja, as coisas práticas”. Neste sentido, pode-se dizer sem medo de errar que a esperança na medida certa – ou seja, aquela que passa longe do escapismo – ajuda, e muito, a viver melhor e a alcançar vitórias. Assim, conquistas pessoais como uma formatura, um casamento, o nascimento de um filho ou a compra da casa própria podem aumentar o nível de esperança e, dessa forma, levar a um novo olhar sobre a própria existência.
“A possibilidade que muitos têm hoje de viver uma vida mais digna, com condições menos desiguais – ainda que nossa sociedade esteja longe de viver em condições igualitárias –, semeia a esperança”, observa a professora Sandra Duarte, doutora em ciências da religião. Para ela, a atitude esperançosa é influenciada pelo meio em que se vive, de modo que as experiências têm consequência sobre a maneira como cada um constrói sua própria noção de esperança. Sandra reflete, ainda, na questão decorrente das conquistas, uma vez que elas incluem o indivíduo, mas também apresentam importante face comunitária. “Isso nos leva à necessária discussão da esperança a partir de princípios que excedam a mera expectativa individual de realização.”

Pode-se reconhecer uma pessoa que vive cheia de esperança conforme sua reação diante das dificuldades, não sendo essas atitudes apenas simples otimismo. A Palavra é o que traz esperança aos que sofrem e ela revela a bondade e fidelidade do Senhor, segundo o teólogo Marco Antonio Fernandes, que tem formação em psicanálise clínica. “O melhor da esperança cristã é que ela se fundamenta no caráter de Deus; portanto, podemos sair da prisão das circunstâncias. Isso não significa alienar-se das situações difíceis”, considera. Ele acrescenta que, no sentido bíblico e teológico, esperança é algo que envolve profundamente as sensações. “Por isso”, diz, “ela é tudo com que sempre sonhamos. Esperar por isso e viver em função disso é ser cheio de esperança”. Poder manter a esperança no meio da tormenta e enxergar sempre um Deus com os braços abertos é, no seu entender, a razão de uma confiança irrestrita em tempos melhores: “Saber-se adotado pelo Senhor e amado por ele é o grande combustível da esperança do crente.”


FÉ QUE ANUNCIA VIDA
O simples fato de se acreditar que um ser todo-poderoso e soberano se importa individualmente com as pessoas – crença conhecida entre os estudiosos como antropomorfização de Deus – já melhora a resposta a tratamentos médicos como a depressão. Artigo publicado no Journal of Clinical Psychology menciona que um estudo realizado pela Universidade Rush, nos Estados Unidos, com 136 pacientes adultos diagnosticados com depressão bipolar ou grave. Internados durante oito semanas para tratamento, aqueles que se consideravam numa situação de “bem estar religioso” – aí entendida a capacidade de crer em Deus e o conforto trazido por essa fé – apresentaram 75% mais probabilidades de responder positivamente do que os outros. “Os médicos precisam estar cientes do papel da religião na vida de seus pacientes diagnosticados com depressão. É um recurso importante no planejamento do tratamento”, aconselha Patricia Murphy, professora de religião, saúde e valores humanos daquele estabelecimento.
Seja qual for a razão que leva o ser humano a criar expectativas de realização, isso o desapontará quando sua esperança estiver colocada em outro que não aquele que, segundo as Escrituras, pode suprir-lhe em todas as necessidades. A psicóloga Elza Barcelos explica que a expectativa inclui a ação de uma pessoa para realizar o desejo de alguém – entretanto, ninguém tem controle sobre o livre arbítrio alheio, o que, geralmente, leva a frustrações. “Já a esperança baseada na fé em um poder supremo que pode intervir tanto na minha vida como na do outro com quem convido”, aponta.
A esperança é uma ação que deve produzir vida para o crente e assim, ele será aprovado no final das tribulações. De acordo com o texto de Romanos 5, Paulo foi julgado e preso por causa da sua esperança. “A esperança cristã, de acordo com Paulo, é resultado do processo que conduz ao caráter aprovado”, afirma o pastor Eliel Batista, da Igreja Betesda de São Paulo. O que se evidencia ainda mais quando se analisa a trajetória de Jesus neste mundo. A esperança do Salvador foi tal que ele continuou confiando em Deus, mesmo em face da morte. Eliel considera possível acreditar que uma mudança aconteça por meio da esperança, já que ela convoca o cristão a colocar a “mão na massa” – “O amanhã não precisa ser igual ao hoje”, avalia.“A história já deixou claro que colocar a esperança na política, na religião ou no dinheiro é um erro. Por isso, nossa fé anuncia uma viva esperança. Uma esperança de verdadeira transcendência, pois o ser humano caminha em direção a ser mais humano – no caso, rumo a Cristo, o melhor dos homens.”



A essência do cristão

Autor da tese de conclusão no curso de teologia intitulada A relevância da esperança escatológica na vida prática da Igreja, Ricardo Porfírio conversou com CRISTIANISMO HOJE sobre a importância do tema na vida cristã:

CRISTIANISMO HOJE – O que o motivou a pesquisar acerca da esperança cristã?
RICARDO PORFÍRIO – O que mais me fascina é como a esperança influencia as pessoas a suportar situações difíceis e o sofrimento. O apóstolo Paulo falou sobre esperança na prática, quando disse que, para ele, o viver era Cristo e o morrer, lucro. Quando falamos sobre esperança, logo pensamos no futuro, mas esquecemos que ela influencia o modo como vemos o presente. N. T. Wright diz que a esperança escatológica pode ser dividida em duas partes – a primeira tem a ver com a vida futura (no caso dos cristãos, a crença na ressurreição e na vida eterna), e a segunda, com o presente.

Embora a Bíblia contenha centenas de promessas aos que creem, poucas vezes esse conteúdo espiritual rende frutos na vida do crente. Por quê?
Sim, a esperança permeia toda a Bíblia e nela percebemos que podemos esperar e confiar em Deus. Mas, se pensarmos que a esperança é só ir para o céu após a morte, estamos limitando a ação de Deus. Pensamos em preparar a nossa alma para a eternidade e nos esquecemos da que podemos viver vida plena aqui no mundo confiando no Senhor e, principalmente, agindo em seu nome.

Mas o próprio Paulo disse que se a esperança do homem limitar-se apenas a esta vida, ele seria infeliz...
Exatamente! Quando colocamos nossa esperança no mundo, vemos que ela é frágil e enganosa; mas, quando a depositamos nas coisas do alto, em Cristo e em Deus, podemos usufruir da fidelidade e do amor. Esses aspectos devem fazer parte da essência do cristão.

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